Thursday, September 6, 2007

Beatrice

As coisas da vida são simples. O que são coisas simples? Pode um pãozinho ser simples? Veneno de cobra é simples? As coisas na sua mais terna e tenra simplicidade se fazem necessárias em minha vida da mesma forma que um pãozinho e que veneno de cobra. Tenho para te contar uma história que mostra como as coisas simples podem ser.

Beatrice estava de férias e descansava em seu posto no quarto círculo de seu próprio inferno, pois havia acabado de descobrir que não se guiam mais homens como antigamente. Desde tempos imemoriais, ela refletia, fumando seu charuto, tantas mulheres tiveram seus delicados corpos transformados em pontes que ligavam, por exemplo, a rua 2 à rua 3 dos vários círculos dos infernos. Enquanto pontes, elas continuam realizando uma espécie de auto-sacrifício em nome de um ritual iniciático pelo qual todos os homens, desta e de outras dimensões precisam passar para chegar ao posto de heróis. Acontece que, Beatrice ponderava, chegara o momento de todas as mulheres-ponte do mundo, se erguerem. Era o que Beatrice chamaria um momento de transição para a verticalidade de pontes.
Enquanto refletia, sentiu a presença de Mercúrio. A noite estava tão clara que era como se a lua fosse sol. O ciclo de 365 dias estava chegando ao fim... havia muito pouco a esperar em um período como esse, de fim. Mas Beatrice não tomou consciência da real presença esfuziante de Mercúrio, pois afinal, estava de férias. Ela observou, placidamente, a passagem de Virgilio e Dante logo ali, a alguns metros de distância. Preferiu ficar invisível. Mas Virgilio, como bom guia, conseguiu perceber Beatrice sob seu manto de invisibilidade. Dante se encontrava num estado quase errático. Ela sentiu o peso do tempo ancestral e o cansaço de anos e anos de trabalho... Mas ponderou e pensou em coincidências. Era muito pouco provável que Dante e Virgilio tivessem conseguido fazer a travessia para onde ela estava. Então entendeu que tudo o que aconteceria, dali em diante, era absolutamente necessário e irremediável. Suspirou. Sorriu por dentro. Dante nunca havia estado com uma Beatrice de férias. Assim, deu-se um estranhamento precedido por uma espécie de encantamento, pois havia o frescor que só o inusitado pode causar. Finalmente Beatrice tirou o manto e Dante buscou os olhos de Beatrice e pôde enxergá-los pela primeira vez. Ela identificou em Dante uma doçura conquistada em batalhas anteriores e sentiu uma compaixão grega. No entanto, Beatrice sabia que Dante deveria enxergá-la por inteiro e não apenas seus olhos. Esta seria uma tarefa árdua para ambos. Ou, talvez simples, muito simples.
Eles passaram algumas conchas-tempo ali, apenas falando dos astros e estrelas e galáxias e do improvável.
Ainda em estado inebriante de encantamento, Dante recolheu da mão esquerda de Beatrice as chaves de seu retiro, o que fez com que ela apenas permitisse que pairasse sobre ela, suave, uma brisa de alento. Ela sabia que, pela manhã, o encantamento morreria. E ela aprendera que deveria deixar as coisas todas morrerem, porque somente coisas que morrem primeiro são da ordem do factível. Em posse das chaves douradas de Beatrice, Dante sentiu um poder que apenas os homens sentem quando confiscam temporariamente o estranho ímpeto das mulheres de fugir, ou de partir. Ele sabia que se Beatrice realmente quisesse ir embora, ela teria lhe roubado as chaves de volta, mesmo que para isso ela precisasse arranhá-lo docemente. E ela não quis.
Havia chegada a hora de Virgilio revelar a Beatrice qual seria a próxima etapa na jornada de Dante.
Dante experimentou, em segundos-momento aquilo que nem havia vislumbrado desde o sempre. Promessas. Reais no momento quando. E Beatrice chorava a cada simples promessa daquelas porque as sabia verdadeiras, no entanto, irreais.
Aquilo que vislumbrava sempre era apenas a batalha, uma batalha irreconciliável entre a razão e o amor.
Razão vence. Amor vence.
Beatrice desce os degraus do 5° inferno. Dante continua sua jornada, rumo a Virgilio.

(Blue Crystal Eagle)

No comments: